O interessante nesses dados é que eles refletem a situação do assédio nos escritórios de advocacia, locais onde, devido à formação de profissionais que necessariamente passam pelo estudo da Constituição Federal, as questões atinentes aos direitos fundamentais seriam – ou deveriam ser – itens de série. Porque é isso que o assédio compromete: os direitos fundamentais à liberdade, à autodeterminação, à integridade física e psíquica, à intimidade, à moral e à imagem das vítimas. Se esses são os números em escritórios de advocacia, causa constrangimento pensar em que pé andam as coisas nos locais onde a sensibilização sobre esses direitos não faz parte da rotina.
Em 2019, a Convenção 190 da OIT usou a expressão “violência ou assédio” no meio laboral, para referir “uma gama de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou ameaças, tanto isoladas quanto recorrentes, que objetivam (ou podem resultar em) danos psíquicos, psicológicos, sexuais ou econômicos, incluindo a violência e o assédio baseados em gênero” (tradução livre). O tema é extremamente relevante para a área de compliance das empresas: primeiro, porque no Brasil o assédio sexual é tipificado como crime no Código Penal (art. 216-A) e a omissão diante de sua prática terá profundos reflexos para a imagem da organização; segundo, porque o TST vem firmando o entendimento de que a responsabilidade civil do empregador é objetiva (independe de culpa do empregador) em face do assédio moral ou sexual praticado por seus empregados no âmbito da relação de emprego, ainda que sem conhecimento daquele, apoiando-se no art. 932, inc. III, do Código Civil Brasileiro.
Cabe ressaltar que há outras sanções dirigidas às organizações onde ocorre o assédio. Basta lembrar, por exemplo, que a Lei n. 11.948/09 proíbe, em seu art. 4º, a concessão ou renovação de quaisquer empréstimos ou financiamentos pelo BNDES a empresas da iniciativa privada cujos dirigentes sejam condenados por assédio moral ou sexual, racismo, trabalho infantil, trabalho escravo ou crime contra o meio ambiente. Também é sabido que muitas empresas adotam a chamada gestão por estresse ou straining, caracterizada quando as vítimas do terror psicológico são todos os empregados, indistintamente, de um mesmo empregador, estabelecimento ou setor. Trata-se do “assédio moral organizacional”, o qual implicará, igualmente, dano moral compensável em razão de ato ilícito. Por meio desta "técnica gerencial", os empregados são levados ao limite de sua produtividade em razão de ameaças que vão da humilhação e ridicularização em público até a despedida. Essa modalidade é mais grave que o assédio moral interpessoal (tradicional), por se tratar de uma prática institucionalizada pela empresa, cuja meta é incrementar a lucratividade às custas da dignidade dos trabalhadores. Caracterizada esta hipótese, será devida uma indenização por dano moral coletivo com tripla função: (a) função punitiva, para punir a conduta; (b) função pedagógica, para desincentivar os infratores (função pedagógica específica) e a sociedade (função pedagógica genérica) a incorrerem em tal prática; e ainda a (c) função reparadora, na medida do possível, dos bens lesados, como preceitua o art. 13 da Lei 7.347/85.
Com tudo isso em vista, a prática de assédio, tanto sexual quanto moral, para além de ensejar a responsabilização do próprio sujeito que o pratica, exige muita atenção quanto aos riscos que representa para as empresas. Ainda que não haja culpa do empregador, ele de fato responderá pelos atos praticados por seus empregados, serviçais e prepostos (CC, art. 933). Em que pese a métrica estipulada pelo art. 223-G, §1º, da CLT (tema controvertido em quatro ações que tramitam no Supremo, as ADIs 5.870, 6.050, 6.069 e 6.082), na Justiça do Trabalho as indenizações devidas pelas empresas em razão do dano moral à vítima são comumente arbitradas em valores que vão de 5 a 15 mil reais, passivo que se soma aos graves prejuízos que podem atingir a reputação da empresa se o caso não for conduzido com diligência e discrição. A oscilação na fixação da indenização decorrerá justamente do modo como a crise é gerida a partir do recebimento de uma denúncia de assédio.
Gestão de crise, de acordo com o Business Standard 11200:2014, é a direção geral da resposta de uma organização a eventos disruptivos, de modo efetivo e tempestivo, com o objetivo de evitar ou minimizar os danos à lucratividade, à reputação e/ou à capacidade operacional de uma organização. A par da proteção da dignidade dos trabalhadores, é em razão dos danos à reputação que o compliance da empresa deve ter especial cuidado com as denúncias de assédio, daí a importância de protocolos pré-estabelecidos que forneçam à direção orientações sobre o que fazer.
Preventivamente, empresas devem adotar e divulgar uma política clara de combate ao assédio, realizando o respectivo treinamento de todos os funcionários. Os treinamentos devem ser conduzidos a partir de abordagens práticas, já que as definições legais de assédio sexual e moral são genéricas e abstratas, podendo se manifestar concretamente por diversas modalidades de conduta. Além disso, todos devem ficar cientes das possíveis consequências do assédio, que vão da advertência à dispensa por justa causa do assediador.
Em havendo a necessidade de remediação, os canais de denúncia e demais recursos de compliance devem estar disponíveis para as denúncias de assédio, as quais deverão ser prontamente investigadas, procedendo-se à coleta de provas documentais e testemunhais. Tudo deve ser devidamente documentado, resguardando-se a confidencialidade para proteger tanto os direitos da vítima como os do acusado. Durante todo esse processo, a empresa deve prestar assistência à vítima, demonstrando empatia, oferecendo apoio psicológico, e dando-lhe ciência das providências que estão sendo tomadas para apurar os fatos à medida que a investigação avança. Isso é muito importante para que o caso seja resolvido interna e discretamente, uma vez que, em geral, as vítimas só levam as denúncias a público quando sentem que nada vai acontecer ou acreditam que a empresa não está realmente comprometida em responsabilizar o agressor e reparar os danos, para restabelecer um ambiente laboral saudável. Finalmente, apurada a denúncia e comprovado o assédio, o afastamento do assediador é medida que se impõe, numa demonstração que o Código de Conduta da empresa é levado a sério.
Aliada a esses recursos de compliance, outra ferramenta a destacar para prevenir, gerir e resolver conflitos de forma eficiente é a mediação. Este instrumento tem sido fundamental para promover mudanças de paradigma, sobretudo pela sua proposta de abandono da cultura de competição e da sentença judicial como único método para solucionar conflitos. De fato, a maioria dos conflitos surge em razão de comunicação equivocada, seja pela falta de entendimento de uma das partes, seja pela desinformação, que são ainda potencializados por uma explosão emocional ou por propostas muito distantes do real interesse de quem vivencia o problema. Tudo isso se passa numa situação de assédio e esse tipo de problema, quando publicizado, potencializa os já irreversíveis prejuízos aos envolvidos no conflito. A figura do mediador, nesse cenário, é de vital importância para ajudar os envolvidos a focar em interesses, e não em posições, no escopo de gerar propostas criativas e parâmetros justos e adequados para uma solução definitiva. A grande vantagem de instituir-se o procedimento prévio de mediação como estratégia de gestão empresarial, para além do uso das ferramentas mais adequadas ao tratamento do conflito, está justamente no aspecto da confidencialidade, tão valorizada nessas situações.
Se, apesar dessas cautelas, o caso vem à tona e se torna público, é certo que a empresa sofrerá o escrutínio quanto a sua reação diante do fato e também quanto às medidas que tenham sido adotadas a fim de prevenir a ocorrência do assédio. Apesar da responsabilização objetiva da empresa, sua postura de intolerância ao assédio e a diligência na apuração dos fatos não só serão consideradas na delimitação do passivo financeiro, como serão fundamentais para resguardar a imagem e a reputação da empresa, preservando-a contra outras repercussões graves que antes mencionamos.
Na comunicação com o público, é importante lembrar que só a verdade tempestiva faz cessar boatos. Sendo assim, se o fato se tornou assunto em redes sociais, cumpre à organização não negar a sua ocorrência e assumir a responsabilidade que lhe compete, pois fazer o contrário só inflamará uma onda de rumores e críticas à sua postura. Deve-se manter sob sigilo todas as informações concernentes à privacidade dos envolvidos – e o público compreende que esse resguardo é legítimo. Mas atente-se que preservar a confidencialidade está muito longe de simplesmente negar o ocorrido ou fingir que nada aconteceu – e temos visto grandes empresas pagando caro por isso junto à opinião pública. O momento exigirá outra postura: admitir falhas internas e aprender com elas, desculpar-se publicamente e demonstrar empatia às vítimas e seus familiares, de modo a expressar que, apesar do lamentável ocorrido, a resposta da organização fez frente à gravidade dos acontecimentos.
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